Usando referências (parte 1/3) - Perigos, preconceitos e o poder do uso de referências

Desde que comecei nesta jornada artística, conhecendo muitos artistas e seus processos de aprendizado, e principalmente agora no Brushwork Atelier Online, percebo que existe um grande preconceito com o uso de referências. Acho que ainda mais no Brasil, temos uma ideia formada de que um bom artista é "auto-didata" e desenha tudo de cabeça. Acredito que a primeira vem perdendo força e a trajetória de cada artista, seja com um mestre ou não, sendo valorizada frente ao resultado gerado. Já a segunda, acredito que estamos longe de chegar num consenso geral. E olha que aqui ainda não citei o uso de fotos aplicadas diretamente em pinturas digitais, o famoso photobashing, só estou falando de referências.

Este vídeo abaixo tem um começo muito interessante sobre este assunto. O conteúdo no entanto acaba por se focar depois em ferramentas e desvirtuar um pouco da questão das referências, porém vale demais a pena ouvir na íntegra.

A parte que vamos utilizar para discutir é o fato do uso de referências em todos os grandes mestres e artistas atuantes no mercado atual. Não importa quem seja, as referências estão lá ou estiveram por muito tempo antes de você desenvolver um trabalho sólido de imaginação.

Nesta série de posts, vamos discutir o uso de referências em três momentos importantes na jornada de cada artista: o processo de aprender a ver e desconstruir o que vemos, a aplicação do que aprendemos em desenhos de criação e o uso direto de referências em sua arte. Vamos começar analisando o aprendizado e como acredito que ele impacta este tópico.

Desde nossa infância, passamos por uma série de fases artísticas diferentes, momentos de criação, momentos de experimentação e momentos de cópia. A autora Betty Edwards fundamenta muito de seu livro Desenhando com o Lado Direito do Cérebro neste desenvolvimento e nos problemas que ele pode acarretar no trabalho artístico de adultos. Segundo ela, existe um momento em nossas vidas, em torno de 10 a 12 anos, que ficamos obcecados com o realismo. É mais ou menos nessa fase que temos a tendência a copiar muito, nos mantendo na zona de conforto da cópia ou simplesmente desistir por acharmos que não temos o "dom" e que nunca conseguiremos atingir os resultados desejados.

O problema, segundo ela, é que na verdade normalmente não desenvolvemos nossa capacidade de ver, a não ser em casos específicos onde tivemos algum tipo de instrução ou acompanhamento. O que estamos fazendo é usando ícones que aprendemos na infância, soluções visuais que de realismo não tem nada. No decorrer do livro, ela apresenta conceitos de espaços positivos e negativos, relações de ângulos, contorno externo, valores e outros elementos que são a base de um bom desenho de observação.

Já discutimos bastante sobre aprender a desenhar neste outro post e em outros do blog, então aqui não vou me aprofundar muito nestas questões técnicas e suas possibilidades. Para ilustrar, segue um vídeo do artista Aaron Blaise, sobre o estudo de uma foto.

Também existem diversos vídeos na internet discutindo o estudo de obras dos grandes mestres, outro tópico bem recorrente na trajetória artística. Estes exemplos abaixo, de Noah Bradley, discutem de forma bem interessante o assunto:

Esta prática é muito importante principalmente para começar a educar sua percepção tanto em proporções, quanto cores, valores, composição e muitas outras sutilezas de uma bela obra. Temos que tomar muito cuidado, porém, para não abraçar estes estudos como uma zona de conforto. Acho que quando temos a instrução que a Betty Edwards sugere, ou aprendemos formas de representar aquele realismo que buscávamos nas cópias, temos a tendência a abraçar este processo com solução única. A busca aí se volta para a representação cada vez mais fiel daquilo que vemos, o famoso "parece foto". Vou utilizar meu caso para ilustrar:

Trabalho do autor com base na obra de David Leffel

Esta pintura me impactou de duas grandes formas, primeiramente porque fiquei feliz com o resultado e segundo que percebi que estava preso novamente na "zona de conforto" de copiar cegamente quase que "pixel a pixel".

Trabalho do autor com base em foto

O mesmo havia acontecido alguns anos atrás, quando fiz esta pintura acima. Este é um daqueles trabalhos que gera bastante visibilidade no Facebook, muitas "curtidas", muitos comentários como "parece foto" e que pode nos puxar para um caminho complicado.

Chegar neste tipo de resultado exige mais paciência do que realmente percepção e técnica. Existe até um processo em que você coloca a imagem em paralelo com seu canvas e pinta exatamente o que está vendo. É o processo do Sight Size da arte clássica levado a um novo patamar. Se você da um zoom, a referência também da zoom junto utilizando só um atalho.

Este tipo de trabalho tem suas aplicações e principalmente no grafite e pintura tradicional, o hiper-realismo tem grande visibilidade. Porém, para as áreas do entretenimento e criação, você vai ficar bastante engessado e dependendo 100% das referências que tiver ou montar. No último post dessa série, trarei exemplos de artistas que usam muitas referências diretas em seus trabalhos, mas vocês vão perceber que a foto neste caso é mais uma ferramenta do que uma muleta.

Quando partimos para desenhos de criação, temos a velha tendência a esquecer as fotos e fazer tudo de "memória" ou de imaginação, sendo que na realidade construímos pouco esta memória, ou biblioteca visual, para utilizarmos no processo. Nossos desenhos ficam então muito abaixo das cópias, gerando grande frustração. Aí o que fazemos? Voltamos para copiar mais desenhos, pois certamente não estamos "prontos ainda". A realidade é que se continuarmos só copiando, aprenderemos muito pouco sobre os elementos que estamos representando. Treinaremos certamente nossa percepção, ficaremos mais rápidos, porém provavelmente não conseguiremos representar o mesmo elemento depois, principalmente se for em uma pose diferente.

Lembro que na minha infância, por volta de uns 12 anos, estava tão frustrado de não conseguir desenhar nada de imaginação (e eu já tinha um trabalho razoavelmente sólido de observação) que desenhei exaustivamente a mesma referência para decorar todos os passos necessários e depois conseguir reproduzir de memória. Nem preciso dizer que isso só funcionou para aquela mesma referência. Depois disso segui por inúmeros anos sem experimentar novamente o desenho de imaginação, um grande erro na minha opinião.

O que fazer então? Na minha opinião, pelo que tenho aprendido ao longo dos anos, uma das melhores soluções nestes casos, além de praticar bastante, é aprender a desconstruir aquilo que vemos, principalmente em termos de formas mais simples e sua interação com a luz. Quanto ao desenho, venho falando deste tópico de desconstrução em diversos posts, mas estes dois links abaixo podem ajudar muito a esclarecer as dúvidas iniciais.

http://www.ctrlpaint.com/videos/form-not-shape

http://www.ctrlpaint.com/videos/constructive-form-pt-1

Caso contrário, sugiro ler estes outros posts sobre o tema do desenho:

Voltando ao exemplo inicial, de Aaron Blaise, com o estudo de animais, podemos pensar que aquele animal tem formas simples, que estão posicionadas em um espaço tridimensional e portanto respeitam regras de perspectiva. Da mesma forma, este tem construções anatômicas complexas que o fazem ser daquela forma. Estudando de forma mais aprofundada as formas, anatomia e gestos, podemos ir refinando nossa percepção sobre este animal e acrescentando imagens em nossa biblioteca visual, que será acessada quando quisermos desenhar de memória. Estes vídeos abaixo demonstram um pouco do que estamos falando:

E se quisermos fazer algo mais complexo, com valores e até cores? Neste caso, será importante ir mais a fundo, estudando de forma aprofundada os conceitos de luz e sua relação com diferentes materiais. Este trailer abaixo é para um dos melhores DVDs que já assisti sobre o tópico. Vale a pena conferir!

Nesta imagem abaixo, por exemplo, queria entender um pouco melhor do setup de iluminação da cena e como diferentes materiais reagiriam se fossem inseridos neste contexto, é uma forma que encontrei de analisar mais profundamente a imagem e também criar algo baseado naquele contexto. (Pintei somente as 4 bolinhas, a imagem de baixo é um print do filme Maleficent)

Estudo do autor diretamente sobre quadro do filme Maleficent

Outras grandes referência neste assunto são Dice Tsutsumi e Robert Kondo, que dão um curso na Schoolism. Eles tem uma série de vídeos fantástica em seu canal do Youtube, seguem alguns exemplos sobre a percepção de luzes, valores e cores.

Já este outro apresenta como o conhecimento pode ser usado para mudar uma cena para diferentes horas do dia ou situações climáticas.

Este processo conversa muito com o que falamos nos posts sobre estudo, life drawing e biblioteca visual, acho que a leitura destes é importante para solidificar os conceitos, gerar mais questões e desmistificar preconceitos. Seguem os links:

http://brushworkatelier.com/blog/2016/1/7/como-melhorar-seu-desenho-em-menos-tempo

http://brushworkatelier.com/blog/2015/11/24/desenho-nunca-subestime-life-drawing

http://brushworkatelier.com/blog/2015/12/11/desenho-nunca-subestime-o-poder-do-life-drawing-parte-22

http://brushworkatelier.com/blog/2016/1/8/desenvolvendo-sua-biblioteca-visual-parte-12

http://brushworkatelier.com/blog/2016/1/8/desenvolvendo-sua-biblioteca-visual-parte-22

Como disse no começo do post, não estou fazendo julgamento de valor sobre diferentes tipos de arte, só estou expressando minha opinião pelo que venho observando na trajetória de artistas que trabalham de memória e observação. Além disso, quero frisar mais uma vez que existe sim importância enorme no estudo de fotos e principalmente grandes mestres, até na cópia pura. A composição, por exemplo, acredito ser um tópico que absorvemos bastante pela percepção e desconstrução em poucos valores, muito mais do que a desconstrução "racional", que muitas vezes é exagerada e cheia de linhas que dificilmente passaram pela cabeça do pintor. Segue uma análise interessante sobre uma obra do pintor John Singer Sargent em termos de composição:

Nos outros 2 posts da série, mergulharemos na utilização destes conceitos para o desenho de memória ou imaginação, assim como a manipulação da leitura e elementos no próprio desenho de observação.

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