Desenho - Nunca subestime o poder do Life Drawing (parte 1/2)
/No final de novembro começamos um novo formato do Brushwork Atelier, conversas, mesas redondas e entrevistas em vídeo. A primeira delas, no dia 23, foi com o grande animador e professor Carlos Luzzi. Tive a honra de recebê-lo para um bate-papo sobre desenho, animação e aprendizado. Segue o vídeo para quem não viu:
Sugiro que assistam com um caderno em mãos para ir fazendo anotações, pois muito conhecimento foi compartilhado pelo Luzzi, ainda estou aprendendo muito a cada vez que assisto novamente.
Irei neste post, dividido em duas partes, apresentar outros materiais para que possamos sustentar e discutir alguns pontos chaves, na minha opinião, desta entrevista. Nesta primeira parte falaremos principalmente do artista Glenn Vilppu, um dos mestres do Luzzi e reconhecido mundialmente pelo seu desenho e sua carreira de professor, principalmente nos estúdios Disney. Já falei do Vilppu anteriormente e certamente falarei muitas outras ainda aqui no blog.
Seguem alguns que quero destacar:
- Análise no desenho: não só uma visão superficial do objetivo, mas sim criar embasamento, com fundamentos de arte e design (na entrevista ele deu o exemplo do Picasso e seus fundamentos sólidos). Quem quer trabalhar nas indústria de cinema, games, animação e ilustração, tem que fazer uma análise do desenho mais profunda do que a superficialidade.
- Compreensão profunda do movimento, da ação: conseguir reproduzir de forma que algo seja crível. (exemplo do Bambi)
- Fundamentos da animação: Gesture, Desenho Tridimensional (sólido), Anatomia, Design e Luz e Sombra. Conhecimentos de anatomia e iluminação vão alimentar o gesture e desenho o sólido.
- Observação vem antes da construção: ter uma base de observação, leitura de espaços bidimensionais e proporções auxilia e gera uma base para o pensamento tridimensional e construtivo. Este processo para Vilppu está intrínseco a coordenação olho e mão.
- Desenho antes da pintura: Luzzi diz trabalhar linearmente, sem necessariamente pintar, Vilppu é parecido. Desenho tonal se relaciona com a pintura. Você não precisa ir direto no sketch para a luz e sombra, porque você acaba perdendo o volume, anatomia.
Não pretendo analisar todos os pontos, mas sim trazer outras questões para discutirmos. Fiquem a vontade para acrescentar questões e outros pontos de vista nos comentários.
O que é Life Drawing?
Primeiramente, acho que é importante definir o que é Life Drawing. Fiz algumas pesquisas e conversei com algumas pessoas sobre o tema e é difícil achar uma boa tradução para o termo, por isso resolvi manter o texto original e conceituar do que estamos falando.
A maioria das referências que encontrei define o Life Drawing como o desenho a partir daquilo que tem vida, muitas vezes relacionado ao desenho da figura humana. A forma mais usual de desenho da figura humana da vida real (from life) são as sessões de modelo vivo. Seja do modelo nu, como nesta foto do Atelie do Mauricio Takiguthi, como do modelo visto ou caracterizado, e também de pessoas na rua e no dia-a-dia, desenhar tentando extrair o movimento, a ação, a vida e a essência, na minha opinião, é Life Drawing.
Pretendo falar mais sobre modelo vivo e o desenho da figura humana em outros posts.
Mas não só de figuras humanas se resume o Life Drawing, pois podemos aprender muito com o mundo animal, seja desenhando o seu cachorro ou gato em casa ou indo a um zoológico desenhar as inúmeras referências que encontramos lá, como é o caso destes desenhos do Luzzi aqui abaixo.
Como discutiremos na sequência, é a forma mais eficiente de dar vida aquilo que você faz. Pratique, teste, experimente, leve seu sketchbook para todos os lados e aprenda com o que existe a sua volta.
Nunca subestime o poder do Life Drawing
Vamos analisar o artigo de Glenn Vilppu citado pelo Luzzi, sendo algumas partes traduções diretas e outras com edições. Você pode acessar o artigo original (em inglês) clicando aqui.
Vilppu já abre seu texto com uma frase que acho de extrema importância, mostrando que os alunos se espantam aos descobrirem que a primeira coisa que estúdios de animação querem ver são life drawings, especialmente da figura humana. E eles não querem ver caricaturas, cartoons e cópias de personsagens dos estúdios, querem ver o desenho de figura humana clássico.
E por que desenho de figura humana tradicional? Ele então lista os pontos mais importantes para o bom desenho de animação:
- Habilidade de comunicar movimento e personalidade através do desenho. Utilizando linhas simples o artista deve ser capaz de dar a figura um senso de vida e individualidade, não somente uma pose de ação e expressões estereotipadas.
- Habilidade de desenhar tridimensionalmente, fazendo com que os personagens não somente pareçam indivíduos, mas que pertençam a um mundo real.
- Habilidade de desenhar consistentemente o mesmo personagens usando as mesmas formas, volumes, proporções e detalhes, no estilo particular adotado para aquela produção.
Como você pode perceber, a lista exige um alto nível de habilidades e ainda nem tocamos nos assuntos como imaginação, storytelling e criatividade.
Desenho renascentista moderno
Mas como um artista adquire estas habilidades? O desenho da figura humana tem sido o padrão de mensuração das habilidades de artistas por centenas de anos. O artista do Renascimento era julgado basicamente pelos mesmos padrões que o artista de animação hoje em dia. Os grandes mestres eram primeiramente contadores de histórias (storytellers). Eles tinham que ser capazes de criar figuras com as quais o observador pudesse criar empatia para que as histórias criassem vida, tivessem um senso de realismo e fossem críveis. O desenho de animação em sua essência é a coisa mais próxima que temos atualmente do desenho clássico do Renascimento.
Para desenhar bem a figura humana de imaginação, você primeiro precisa ser capaz de desenhar as formas simples de construção, esfera, caixa, cilindro e cone, de memória, em qualquer posição e combinação. O famoso artista Peter Paul Rubens disse que "você pode desenhar qualquer coisa utilizando uma esfera, uma caixa e um cone." Estes volumes simpels são os fundamentos do bom desenho da figura e ferramentas essenciais para a sua construção.
Um portfólio será rejeitado automaticamente se as figuras no mesmo não tiverem um senso claro de volume e posicionamento inequívoco no espaço baseado no modelo de observação.
Formas e Técnica
É importante entender a diferença entre o desenho para animação e o desenho para ilustração. Na animação, desenha-se quase que exclusivamente de imaginação e portanto deve ser capaz de construir a figura com o "olhar da mente". Na ilustração, o artista geralmente utilizará um modelo ou fotografias para trabalhar quando necessário. O ilustrador também só precisa de um ângulo particular a ser usado na imagem. Desta forma, o treinamento tende a desenvolver uma robusta habilidade de de copiar o modelo, assim como diferentes técnicas de comunicação visual.
Em seu curso de Figure Drawing for Animation, Vilppu fala continuamente para seus alunos que não devem copiar o modelo. Devem analisar o modelo. Quanto a técnica, o artista de animação deve focar em descrever a forma com o mínimo de individualismo possível. Uma animação é um conjunto de trabalhos de muitos artistas. O trabalho que cada artista deve se encaixar na direção geral da produção e não chamar atenção para um estilo individual. Estas questões têm bastante relação com a diferença entre a ilustração e o concept art, que já discutimos anteriormente neste outro post e que certamente discutiremos novamente no futuro.
Claro, outra razão para requerer o desenho da figura humana é que muitas animações são baseadas em personagens humanos. A habilidade de modificar formas reais para animação requer profundo conhecimento da primeira. Você não consegue desenhar algo que você não conhece. Consequentemente, os desenhos de figura humana de um candidato a animador devem mostrar conhecimentos razoáveis de anatomia.
Por fim, ele admite que existem casos extraordinários de artistas que não possuem treinamento formal. Porém ele preferiria apostar sua carreira nas habilidades artísticas enquanto tenta desenvolver um novo personagem "superstar" . Mas como um artista e amigo dele, Don Griffith, diria quando perguntado sobre um desenho em particular e depois de dar suas considerações, "É a sua carreira!".
Mais sobre Glenn Vilppu
Na sequência vou apresentar alguns outros materiais muito interessantes para conhecer um pouco mais do trabalho de Glenn Vilppu. Ele deu uma entrevista e uma demonstração para o site Proko.com falando sobre sua história, seu processo e respondendo dúvidas dos internautas. Vale a pena conferir:
Achei muitos pontos importantes na fala de Vilppu e que quero compartilhar com vocês: Primeiramente achei interessante seu processo de desenvolvimento artístico, que não foi dos mais simples. Apesar de nascer em uma família de artistas ou apreciadores de arte, ele teve que trabalhar em muitas outras coisas para poder sustentar sua busca artística.
Outra questão é que para ele a parte mais recompensadora de ser um artista é resolver os problemas, tanto do ponto de vista de seus desenhos e pinturas, mas também como professor. Ele está sempre buscando novas e melhores formas de comunicar uma idéia.
Acho essencial esta postura, pois muitas vezes, como já disse em outros posts, buscamos respostas prontas para nosso problemas. Quando percebemos que para estes grandes mestres a graça está justamente no processo de encontrar respostas e resolver os problemas, tendemos a entender mais sobre o que é a prática artística e questionar o que realmente estamos buscando.
Para estudar, ele sugere elencar os pontos que você precisa estudar, cor, composição, anatomia, etc, e buscar livros sobre artistas que excedam exatamente nestes pontos que você procura melhorar e estudar destas referências. Outro ponto é de estudar a história da arte e seus grandes mestres, algo pouco feito pelos estudantes.
"Se você tem dificuldade em algo, estude este conceito até que melhore no mesmo."
Com relação ao processo, é visível que ele começa pelo gesto, depois formas tridimensionais e por fim luz e sombra, assim como citado pelo Luzzi. É curioso que VIlppu comenta que, em seu processo, desenhar a partir de uma foto é mais difícil do que de um objeto/animal/figura real. Pelo que posso extrarir disso, como você pensa tridimensionalmente, é mais difícil você pegar algo já resolvido no bidimensional e fazer a engenharia reversa. É a forma de pensar. Desenhar como se estivesse explorando um ambiente tridimensional.
Para conhecer mais sobre o trabalho de Glenn Vilppu e como aprender com ele, seguem abaixo dois links, um para seu curso online, a Vilppu Academy, onde você tem um grande número de aulas por 30 dólares por mês e a Vilppu Store, onde pode comprar todos os livros e DVDs:
Saindo do estúdio
Em linha com o que falamos até aqui e também o que falamos no post sobre nos reconectarmos com a beleza do mundo (que você pode ler clicando aqui), é muito importante que artistas vão para as ruas, zoológicos, florestas, para capturar a essência e vida a nossa volta. Neste vídeo abaixo, o grande artista Aaron Blaise recebe Glenn Vilppu para falarem um pouco sobre Life Drawing.
Como o Luzzi falou e Vilppu também diz, é importante ter habilidades de percepção e coordenação entre olho e mão razoavelmente desenvolvidos antes de nos aventurarmos no desenho tridimensional, para tal, aconselho buscar os outros posts que fiz sobre desenho, em especial este clicando aqui, e assistir ao vídeo também de Aaron Blaise abaixo:
Uma vez que esteja com conhecimentos sólidos do desenho bidimensional, com uma percepção apurada, você poderá se aventurar no desenho tridimensional. Abaixo, segue uma série de exemplos de desenhos de Vilppu, demonstrando tanto seu processo completamente from life, como também o início em locação e a finalização a partir de fotos e outros estudos.
Aplicações na animação
Para ilustrar do ponto de vista de aplicação para animação, comentamos na entrevista de um vídeo da Bela Adormecida que quero incluir aqui:
E a Disney tem uma série de outros exemplos, seja na figura humana como este vídeo da Alice aqui ao lado e também de cenários e animais como é o caso do Rei Leão, para o qual coloquei uma série de imagens e um vídeo aqui abaixo:
Lembrem-se que para desconstruir você precisa primeiramente conhecer. "Não se desenha o que não se conhece". Antes de tentar "copiar" um estilo como o Disney, tente entender o que está por trás daquele resultado, quais foram as referências, inspirações e elementos simplificados.
Livros sugeridos
Durante a entrevista, o Luzzi sugeriu também uma série de livros para os quais colocarei mais informações e links aqui.
Drawn to Life é uma coletânea de ensinamentos do mestre Walt Stanchfield durante mais de 20 anos trabalhando para a Disney. Vale ver o vídeo abaixo para conhecer mais deste projeto:
Sobre o livro Illusion of Life encontrei um belo vídeo com alguns dos conceitos:
E também os do George Bridman, para o qual colocarei um exemplo aqui abaixo, mas você pode encontrar muitos outros livros na página de Livros aqui do Brushwork, clicando aqui.
Na parte 2 deste post traremos mais exemplos de animadores que utilizam o Life Drawing como base de sua técnica e de suas carreiras. Em especial, trarei informações de Karl Gnass, outro professor do Luzzi e que foi citado na entrevista. Ele também possui uma vasta experiência como professor e animador. Muito destas conversas também serão feitas em uma série de posts sobre o desenho da figura humana, que estou montando aos poucos.
Veja também outros posts sobre desenho:
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