O meu ponto de vista sobre ser artista no Brasil

Hoje comecei meu dia com uma lembrança do quanto a sociedade, principalmente brasileira ainda tem que evoluir com relação ao fazer artístico. Depois de me meter a palpitar "naqueles grupos de família" que discutem comunismo e capitalismo como especialistas graduados, recebi uma mensagem mal educada de um parente que sempre respeitei como pessoa. Não vou me estender no assunto, para não virar "casos de família", senão teria que chamar a Márcia Goldschmidt.

Alguns pontos porém são necessários e gostaria de incluir na íntegra:

  • "Você é muito pretensioso e metido, isso todo mundo sabe."
  • "... que chama ficar desenhando de estudo."
  • "Isso (...) é coisa de quem não é chegado em trabalhar e acha nicho para enganar trouxa"

O restante da frase vou omitir por baixar o nível para além da discussão verbal e entrar no mundo dos que ficaram sem argumentos. Quero desde já agradecer a pessoa tanto pela honestidade, tirar as máscaras é importante numa relação saudável e também por discordar do que eu falo, que como aprendi com meu amigo Jessé, "a discordância que leva ao progresso".

Arte do autor com base em frame do Indiana Jones

Vamos por partes. Primeiramente, venho querendo discutir este tópico da busca interior há muito tempo, mas nunca encontrava um contexto que se encaixasse sem que fosse parecer um desabafo desnecessário.

Realmente, sempre fui muito pretensioso e metido, e por um motivo especial, pelo menos assim acredito, sempre fui muito bom em exatas, o que consequentemente me torna "bom na escola", nos moldes da nossa sociedade. Segundo Ken Robinson, nesta palestra que você pode conferir abaixo, temos uma hierarquia na estrutura educacional atual que elege em primeiro lugar as exatas, depois as biológicas, seguidas pelas humanas e nestas as artes vem em último lugar.

Não é difícil para nós, principalmente olhando a estrutura educacional brasileira, perceber a importância do que ele está falando. Ainda mais para nós que seguimos carreiras artísticas isso fica bem evidente.

Tendo em vista esta facilidade com os números, me formei em engenharia na Escola Politécnica da USP, que em questão de prestígio, acredito só perder para os cursos do Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o famoso ITA. Durante os 6 anos como aluno da instituição, sempre questionei toda essa fama e esse reconhecimento. Conheci lá dentro muita gente preguiçosa, desmotivada, que levou, assim como eu, aquela "tão difícil" instituição nas coxas por todos os anos. Demorei muito para entender que aquilo que era um pouco mais natural para mim, que sempre estudei em escolas boas, tinha uma estrutura familiar diferenciada e com pai engenheiro do ITA também, não era a realidade de muitas pessoas. Foi aí que meu lado pretensioso e metido começou a se tocar das realidades da vida.

Sempre tive interesse pelas áreas artísticas, mas durante a faculdade fiquei neurótico por ganhar muito dinheiro. Tinha uma visão extremista conservadora e não abria a cabeça para nada que não "acreditasse". Além disso, realmente achava que sabia tudo e quando resultados profissionais e financeiro apareceram fiquei ainda mais arrogante. Para encurtar esta história, vamos passar para o momento atual, depois de anos de estudos de arte e há 3 anos fora do mercado financeiro, onde atuei como consultor e analista de marketing por uns 2 anos e meio no total.

Nunca aprendi tanto sobre mim mesmo quanto nestes últimos 5 anos e também sobre a sociedade que nos cerca. O processo de falhas continuas da arte, a falta daquela zona de conforto anterior e o questionamento de tudo que achava que sabia e do quanto eu "era bom", me fizeram por um lado desenvolver uma hipertensão tratada com remédio (stress é complicado, respeitem suas saúdes!), mas por outro perceber como eu era pequeno perante a vida e quanto minhas convicções podiam estar enganadas.

Visitando a Escola Politécnica novamente, depois de anos, fiquei me perguntando: por que isso aqui tem tanto prestígio? Por que um aluno de artes que estuda, sem exageros, 10 vezes mais que um aluno de engenharia tem 10 vezes menos respeito e reconhecimento.

Não vou entrar no mérito de discutir economia, revolução industrial, pós guerra e outros, porque não tenho cacife para tal, mas acredito que nessa sociedade do ter, acabamos nos esquecendo do que é o ser. Acabamos nos esquecendo de olhar para dentro. Acabamos nos esquecendo de questionar. Só queremos dinheiro, comprar e mostrar. Com as redes sociais então, a coisa vai longe. Só quero expor, através dessa grande confissão, que a prática artística me levou a refletir questões que nunca tinham vindo a tona.

Se eu continuo pretensioso e metido, com certeza, a melhoria é um processo contínuo e não cabe a mim tirar em 2 a 3 anos uma inércia de quase 30 de convicções e crenças distorcidas, cabe ao tempo e a constante reflexão. Por isso gosto muito e valorizo demais a discordância e a discussão nos dias de hoje, aberta ao estudo de questões, pensamento crítico e a reflexão. Ainda tenho também um viés muito grande para o lado analítico, sina de engenheiro, mas aos poucos tenho visto o quão importante são os processos emocionais e instintivos também. Por outro lado, por ter tido oportunidade de seguir a trajetória que segui e as ferramentas que me foram dadas, dinheiro, inglês, estudo fundamental e superior, me sinto no dever de exceder a média em termos de pensamento crítico e gerar valor. Talvez isso também seja errado da minha parte, mas é algo que acredito no momento. Se muito nos foi dado pela "sorte" de nascer em um ambiente favorecido, cabe a nós jogar adequadamente com as cartas que nos foram dadas.

Minha questão, do ponto de vista artístico, é quando, como sociedade, vamos entender que a vida não é só ter e mostrar? As artes tem sido cada vez menos valorizadas e mais apagadas neste contexto todo. Será tarde demais para mudarmos?

Essa discussão por Whatsapp não foi só um bate-papo qualquer para mim, foi mais uma das minhas tentativas de tentar expor um pouco disso que aprendi através da falha para aqueles que amo e que se dizem apoiadores das minhas atitudes. A maioria das pessoas eu realmente ignoro, ainda mais neste momento de polarização política do Brasil, mas aqueles com quem me importo, não costumo relevar. Talvez um erro meu também, porque realmente tenho visto que, como me disseram uma vez, "tem coisas que se você tem que falar, é porque a pessoa não vai entender".

Mas vamos voltar ao nosso texto. O segundo ponto que gostaria de discutir é o fato de estudar desenho ser tão ignorado nos tempos atuais. Comecei a discussão em alguns textos sobre motivação e principalmente em um que intitulei "Não é só um desenhinho...". Você pode lê-lo também pelo link abaixo:

http://brushworkatelier.com/blog/2015/8/7/no-s-um-desenhinho

Neste post, quero me manter no mundo dos leigos e provocar a todos os artistas e estudantes de arte, principalmente do entretenimento, a difundirem a ideia de que desenho, design e a concepção do belo está em tudo que nos circula, inclusive no próprio processo do fazer artístico e sua introspecção.

Precisamos entender também que tudo que vemos, usamos e damos por certo e usual, foi desenvolvido por equipes de tamanhos muito variados.

Da escova de dente no seu banheiro, o chinelo no seu pé, o celular no seu bolso, os pratos, sua casa, seu carro, tudo, até o filme que você assiste ou o jogo que joga para descontrair foram projetados visualmente por pessoas. Foram "desenhados".

Não quero nem entrar no âmbito da arte como poder de questionamento político e o que é arte ou não é. Isso daria margem para "gostos" que fogem do escopo da discussão. Apesar disso, queria deixar registrado que este é um dos pontos mais importantes do fazer artístico e está por trás de grandes obras de entretenimento também, nossa voz enquanto pessoas, nossa mensagem enquanto comunicadores. Nunca canso de sugerir vídeos do Mike Hill como forma de contestar tudo que você entende por cinema "pipoca".

Por outro lado, mesmo os filmes muito ruins, existem inúmeras pessoas por trás fazendo o seu melhor. Essa discussão é levantada por Maciej Kuciara e Andree Wallin, artistas trabalhando diretamente em Hollywood. Eu mesmo ainda me pego sempre julgando o filme por sua história e roteiro e desvalorizo o trabalho colossal de tornar aquela ideia uma realidade visual.

Nós, que baixamos na internet nossos filmes e séries, e ainda assim queremos ser artistas e ganhar por isso, devemos repensar nossos conceitos também. Lógico que o grosso do dinheiro também não vai para os artistas, mesmo em produções como Life of Pi que é 70%+ computação gráfica, mas isso é discussão para outro dia.

O importante a frisar é que TUDO, literalmente tudo que nos rodeia foi desenvolvido por alguém. Desenvolvido visualmente.

Além disso, o processo de tornar algo belo é tão complexo que levará uma vida inteira para você entender profundamente um de seus aspectos. Não quero entrar em detalhes que só os artistas entenderiam, porque espero que este texto fique acessível para um público maior (apesar do tamanho).

Então sim, desenho é estudo, desenho é estudo de formas, desenho é estudo de funcionalidade, desenho é estudo de beleza, desenho é estudo da vida como um todo. Desenho também é estudo de nós mesmos e do que entendemos como certo ou errado, todos nossos preconceitos (principalmente visuais).

Para deixar mais claro, gostaria de usar um exemplo do Mike Hill novamente, para o design, ou projeto, desenho, de uma simples cadeira. Sabemos os aspectos funcionais da cadeira, sentar, correto? Mas qual será o formato dessa cadeira? As pernas e tábuas serão retas? Curvas? Qual inclinação? Terão detalhes? O que a torna interessante? O que torna qualquer coisa interessante visualmente? Chamará a atenção em uma loja (aspecto mercadológico)? Aguentará pesos (aspectos funcionais)? De qual material será?

Além disso, como podemos ver no vídeo abaixo, em uma peça de entretenimento ainda precisamos nos questionar qual a mensagem que ela irá passar, como se encaixa no contexto, na narrativa, nas metáforas e assim por diante.

Não é um processo simples, uma coisa que vem com dom. Você pode até discutir que o fazer artístico é muito a favorecido por habilidades natas, ok, apesar de discordar eu não vou discutir. Mas todo o pensamento crítico por trás destas construções, pesquisa, análise, comportamento, história e realização são processos que tem que ser exercitados e meticulosamente analisados para se chegar a um bom resultado.

E acho que cabe a nós artistas começar a mudar este quadro. Morei um período com a minha avó onde expliquei para ela que através de um grande filme existe uma equipe enorme de pré produção, outra de produção e uma terceira de pós produção. Dependendo do tamanho do projeto, milhares de pessoas, aquelas "letrinhas" no final. E que todos ali aprenderam o que fazem, acordaram cedo para trabalhar e realizar sua função específica no todo. Maciej também discute isso com Andree do ponto de vista da realização de um curta metragem, onde você tira o chapéu de concept artist para ser tudo, de diretor a motorista dos seus atores. Aí sim você começa a entender a escala das coisas. Se nem para nós, do meio ou interessados isso fica tangível facilmente, imagine para um completo leigo. Temos que aos poucos ir educando a sociedade até onde pudermos. Valorizando o fazer artístico dentre aqueles a nossa volta, principalmente os dispostos ou que fingem estar.

Por fim, para não me estender demais no assunto, gostaria de entrar na questão de empreendedorismo, ensino e o que tenho aprendido com isso também.

Como falei anteriormente, foi depois de sair de uma das mais conceituadas instituições de ensino do Brasil e começar a estudar arte que realmente compreendi o conceito de esforço, dificuldade e determinação frente a falhas e mais falhas. Mas era isso que eu queria enquanto estava no mercado financeiro.

Não via sentido em chegar em casa depois de um dia de trabalho e não querer mais nem ouvir falar do assunto que discuti durante o dia. Queria chegar com a vontade de me aprofundar no assunto. Mal sabia eu o que estava desejando. Depois de quase 3 anos sem desligar do trabalho, sempre questionando os caminhos, decisões e resultados, vejo o quanto isso também pode ser ruim e fazer mal.

No último ano, fiz mais de 50 posts, entrevistas e reviews no blog, de assuntos que muitas vezes eu tinha que pesquisar profundamente, trabalhei em paralelo em uma produtora de games e desenvolvi meu projeto de venda de um curso com um formato diferente do que já existia no Brasil. E posso falar, não foi pouco trabalho.

Não estou falando isso pra me defender, principalmente porque pago minhas contas e não devo satisfações, mas digo isso aos que acham que vida de empreendedor é fácil e que gostariam de "abrir o próprio negócio".

Por outro lado, fiz isso tudo buscando um resultado sério e que contribuísse para a comunidade artística brasileira, na qual acredito de verdade. Sou abertamente contra a venda do "sonho" de trabalhar com jogos e filmes em uma indústria praticamente inexistente no Brasil. Estes sim são os empreendedores que enganam "trouxas" a pagar um dinheiro que as vezes não tem por um resultado que dificilmente conseguirão. Levanto a bandeira dessa discussão sempre que posso e acho que todos deveriam fazer o mesmo. Recentemente participei do I Fórum de Educação para Jogos Digitais, onde fui especificamente para provocar a discussão das falhas da nossa estrutura atual e do que podemos fazer para melhorar. Este mercado existe sim, em sua maioria fora do país, então precisamos deixar bem claro os passos largos que existem até deixar a estrutura nacional mais robusta.

Do ponto de vista macro, não sei que resultado gerarei no longo prazo, porém, já durmo feliz pelas dezenas de e-mails agradecendo pelo impacto positivo que gerei nas vidas das pessoas, as vezes ajudando com a motivação, direcionamento ou com a pura provocação do que eles achavam certo na jornada de estudos. Também pelas discussões um pouco mais profundas que fomentei, isso já me dá esperança de evolução. A isso tenho que agradecer a toda a comunidade que acompanha as discussões e meus projetos. Também aos meus alunos que acreditaram numa estrutura um pouco diferente, mas baseada em muita análise do ensino no exterior e padrões apresentados por auto-didatas. Acredito que estamos em um ótimo caminho e os resultados estão aparecendo aos poucos.

Resumindo, este post foi sim em minha defesa, principalmente de mim mesmo, para que eu receba as palavras como aprendizado. Mas também, foi uma forma de expor o que vejo sobre nossa comunidade, nosso mercado e nossas práticas, que tem ficado cada vez mais maduras e com atitude profissional. Espalhem estas palavras e este conceito, o que fazemos gera valor para os clientes e usuários! Seja para a revista com uma ilustração, seja para um produto áudio-visual, ou para um objeto do cotidiano, ou até mesmo nas discussões políticas e escolas de pensamento, o fazer artístico não é só necessário como essencial para a vida. Esqueçamos um pouco o ter e mostrar, parando para questionar o que queremos ser.

Desculpem a repetição de alguns assuntos de outros posts, mas achei necessário me expressar sem filtros nesse momento de reflexão pessoal. Por fim, deixo vocês com o texto apresentado na palestra de Ken Robinson:

The Cloths of Heaven
Had I the heaven's embroidered cloths,
Enwrought with golden and silver light,
The blue and the dim and the dark cloths
Of night and light and the half-light;
I would spread the cloths under your feet:
But I, being poor, have only my dreams;
I have spread my dreams under your feet;
Tread softly because you tread on my dreams.
W. B. Yeats

Muito obrigado por tudo! 

P.S.: "Tread softly because you tread on my dreams."